O discurso é bonito, os eventos são cheios de palavras como “transformação”, “inovação” e “parceria”, mas, nos bastidores, o setor social vive contradições que raramente vêm à tona. Métricas que mais escondem do que revelam e uma cultura de vaidade institucional são apenas algumas das questões apontadas com franqueza por Fábio Deboni.
Engenheiro agrônomo pela ESALQ/USP e mestre em Recursos Florestais, Fábio tem mais de 20 anos de atuação no campo socioambiental e no terceiro setor. Passou pelo Governo Federal, pelo Instituto Sabin, foi membro do conselho do Gife e hoje é diretor de programas da Aliança Bioversity-CIAT. É também autor do livro O que não te contaram sobre impacto social, escreve diariamente em seu blog e produz, desde 2019, o podcast Impacto na Encruzilhada, onde propõe análises críticas sobre a atuação de filantropos, organizações sociais e negócios de impacto no Brasil.
Nesta entrevista, Fábio fala sem rodeios sobre os modismos do setor, os limites das métricas e os desafios concretos enfrentados pelas organizações da sociedade civil.
1. Em seus textos, você critica a superficialidade com que o termo “impacto” é utilizado. Como seria uma abordagem mais realista, ética e eficiente?
No meu livro, tento fazer um pouco esse debate sobre o termo impacto social, que na realidade “rebatizou” o termo transformação social, com o qual me identifico mais — embora esteja em desuso. Para além desse rebranding, vieram novas expressões como “investimento de impacto”, que é a ideia de fazer transformação social por meio de abordagens de mercado. E quem está escutando essa conversa muitas vezes não consegue separar de que impacto estamos falando. Um dos efeitos dessa roupagem é que se priorizam métricas, e se reduz a visão humana.
De uma hora pra outra, só serve impacto social que for quantificável. E aí entra a quantidade de hectares restaurados, número de vidas salvas… Quando você coloca a lupa, vê que tem exagero. Se pegar os dados de todas as organizações que atuam na Amazônia, por exemplo, e somar a quantidade de hectares que dizem ter restaurado, vai dar uma área muito maior do que a própria Amazonia. Isso acontece porque virou quase uma obrigação transformar tudo em número. Só que muito trabalho bonito acaba ficando invisível nesse processo — não porque é irrelevante, mas porque não cabe nessa lógica da métrica pura.
2. No livro “O que não te contaram sobre impacto social”, você aponta verdades incômodas do setor. Quais destacaria?
Uma delas é essa ideia de que o setor social é todo colaborativo, que todo mundo é parceiro, irmão, camarada. Isso é falácia. Não estou dizendo que está todo mundo puxando o tapete do outro, mas quando você conhece as entranhas das organizações, vê que é como qualquer outro ambiente: tem disputa, vaidade, competição. Na pandemia, houve esse discurso bonito de que o setor se uniu, criou redes, e de fato aconteceu. Mas isso não se sustentou. Hoje o setor está numa lógica de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, e essa colaboração ficou restrita a certos círculos.
Outra questão é a priorização da mensuração. Parece que só é valorizado o que tem número. E isso cria uma distorção: projetos muito relevantes que têm dificuldade de “medir” ficam pra trás. Já outros que conseguem mostrar gráficos e relatórios ganham mais atenção dos financiadores, mesmo que o impacto real seja menor. Aí vem o dilema: a gente sabe que o nosso trabalho é pouco quantificável — e mesmo assim precisa virar número. Isso precisa ser debatido com honestidade.
Tem também o problema do custo da mensuração. Hoje não basta dizer que gera impacto positivo, você precisa comprovar. E isso envolve processos caros. Poucas organizações conseguem bancar uma mensuração séria e consistente. Isso criou quase um subsetor dentro do nosso setor, que são as butiques de mensuração. É bonito no discurso, mas inacessível pra maioria.
3. O podcast “Impacto na Encruzilhada” aborda temas polêmicos. Qual episódio você destaca como mais provocador?
Nossa, isso é como pedir para escolher o filho preferido, mas dois me marcaram bastante. O episódio 187, chamado “Ao financiador, tudo”, fala sobre como o financiador coloca os prazos, estabelece as regras, tem o dinheiro na mão e faz o que quiser — e ninguém pode falar nada. A gente entra num círculo vicioso em que todo mundo quer agradar o financiador.
Outro episódio que teve muita repercussão foi o 127, “O que não te contaram sobre cultura de doação”. Muita gente escuta até hoje. A questão não é ser contra a cultura de doação — todo mundo quer um Brasil mais doador. Mas o debate é muito raso, evita questões políticas, e a gente pisa em ovos quando o assunto são os milionários e bilionários. Ninguém quer questionar como essas fortunas foram geradas, e mesmo quando parte do dinheiro vai pra filantropia, é só uma fatia pequena. Esses dois episódios fiz sozinho, sem convidado, então consegui ir mais fundo. Quando tem convidado, a gente alinha pauta antes e evita colocar alguém na saia justa — mas depois que desliga a gravação, surgem mil outras camadas.
4. Você já mencionou a “juniorização” do setor. Pode explicar esse conceito?
Esse termo não é meu, já circula por aí. É primo-irmão da flexibilização trabalhista. O setor sempre viveu com poucos recursos, mas agora a escassez está ainda maior. Então, para reduzir custos, muitas organizações demitem suas equipes e contratam PJs. Algumas pessoas se adaptam bem, outras se ferram. Além disso, há uma tendência de contratar pessoas mais júniores porque são mais baratas. Mas nem sempre essas pessoas conseguem segurar a bronca de projetos complexos. Isso vale também para consultorias: tem muito júnior entrando e fazendo leilão de preços, mas sem capacidade de entrega.
É algo que acontece em vários setores, mas no nosso isso é pouco falado. Aqui tudo é “lindo”, “transformador”, todo mundo vendendo inovação, mas a verdade é que muita gente sênior e estratégica está sendo escanteada porque é mais cara. E isso impacta diretamente na qualidade do que se entrega.
5. Quais os principais desafios para a sustentabilidade das organizações hoje?
Eu diria três pontos. Primeiro: essa tal sustentabilidade econômica realmente existe? Para quem ela existe? A verdade é que a maioria das organizações está sempre pedalando pra captar recurso. Isso é super perverso. A gestão estratégica acaba ficando na mão de gente mais júnior, que não tem experiência para decisões de médio e longo prazo.
Segundo: tem se falado muito em “recurso livre”, e isso é um avanço, mas ainda é um discurso que não se concretiza na prática. A maioria dos financiadores no Brasil não disponibiliza esse tipo de recurso. É uma armadilha: todo mundo fala que é importante, mas na prática é a conta-gotas.
Terceiro: como estão sempre buscando recursos, as OSCs acabam se moldando aos desejos do financiador. Viram uma espécie de garçom, ajustando o cardápio ao gosto do freguês, mesmo que isso signifique se afastar de sua missão. Às vezes fazem “qualquer negócio” e se descolam do território, da comunidade. Não estou dizendo que está certo ou errado — mas precisa ser assumido honestamente. Muitas vezes se usa o vínculo com a comunidade como cortina de fumaça.
6. Que habilidades você considera essenciais para quem quer atuar com impacto social nos próximos anos?
Acho que a primeira é ser solucionador de situações. Às vezes me taxam de crítico demais, mas uma coisa é pensamento crítico, outra é não fazer nada. As OSCs muitas vezes ficam presas no diagnóstico, ou usam uma ferramenta que virou “remédio pra tudo”. Precisamos buscar soluções mais efetivas e fazer a parada acontecer, mesmo sem condições ideais.
Segundo, precisamos abraçar os novos tempos. Na área ambiental, tem mil soluções baseadas na natureza, novas ferramentas… mas as pessoas são as mesmas de 20 anos atrás. Ficam cristalizadas numa forma de pensar. Não dá pra se fechar às novas abordagens, mas também não dá pra se vender totalmente a elas. A própria inteligência artificial, por exemplo: tem gente dizendo “sou contra”, mas será que não vale buscar o que ela tem de útil?
Por fim, acho que nosso setor precisa calçar mais as sandálias da humildade. O ego está muito inflado. O cenário está desafiador, e nos eventos todo mundo aparece com discurso ensaiado, media training afiado… mas no fundo é só auto confete. Todo mundo se diz inovador. Se isso fosse verdade, a gente não estaria com tantos problemas
